++ INSÔNIA: Onde Vamos Parar ou (para os optimistas) por onde vamos seguir?

03 junho, 2006

Onde Vamos Parar ou (para os optimistas) por onde vamos seguir?

O texto abaixo foi copiado do "Um Caipira na Paulista" e... pô leiam sobre como a ganância e a falta de bom senso podem custar uma vida ou dar preço a uma morte.
Segue o texto:
"Que país é este?
Está lá no site NoMínimo:
Assim morre um brasileiro 17.03.2006
Inácio Mendes da Silva era o nome dele. Nasceu em Salgadinho, na Paraíba, tinha 52 anos. Casado com Lígia, pai de dois filhos, morava em Embu, na região metropolitana de São Paulo. Há três anos trabalhava como porteiro de um velho prédio da rua Oscar Freire, na região dos Jardins, onde ganhava R$ 1.200 de salário.
De porte atarracado e pouco falar, sempre muito sério e reservado por trás dos óculos, sabia-se quase nada sobre a vida de seu Inácio, como era chamado pelos moradores.
Os colegas do porteiro só se lembram que ele sofria de pressão alta, mas não aparentava ter problemas mais sérios de saúde. Por volta das duas horas da tarde de domingo, ele deixou sua guarita para acompanhar um morador idoso do prédio até o restaurante. Na volta, caiu na calçada.
O que aconteceu a partir daí é um retrato três por quatro da sociedade brasileira do início do século 21. Há nesta história alguns exemplos de solidariedade anônima e omissão pública, o funcionamento (ou não) dos serviços de emergência, o desamparo do cidadão sem padrinho e a corrupção que faz da morte um bom negócio na mão dos famigerados papa-defuntos.
***
Em volta do corpo deitado no chão logo começou a juntar gente, cada vez mais gente, no sentido mais literal do significado da palavra gente. Seu Inácio estava tendo convulsões, mas ninguém se arriscava a encostar a mão nele. Celulares começaram a ser disparados para todos os números e em todas as direções: 190 (Polícia Militar), 192 (Samu) e 193 (resgate).
Eram moradores do prédio, porteiros da vizinhança, seguranças de um hotel, o homem da banca de jornal, casais que passavam pela rua, frentistas do posto ao lado. Ao todo mais de trinta pessoas improvisaram um mutirão. Até os meninos engraxates que trabalham na rua foram pedir socorro ligando de um orelhão.
Dois médicos que estavam almoçando no Santo Grão, o café mais badalado da cidade, vieram correndo e, após um rápido exame, diagnosticaram que seu Inácio havia sofrido um AVC (acidente vascular cerebral). Alguém foi pedir ajuda na Drogaria Paulista e voltou com um aparelho de medir pressão.
Enquanto isso, um dos médicos foi até a Onofre, outra farmácia próxima, para comprar o remédio Diazepan, mas os balconistas se recusaram a atendê-lo. Havia um homem morrendo a poucos passos dali, mas como o médico estava sem o receituário num dia de domingo de folga, não adiantou mostrar documentos, dar o número do seu CRM, assinar algum documento. Sem receita, nada feito, é a lei.
E o tempo passando. Meia hora depois, nada de ambulância, nenhum sinal de presença de qualquer servidor ou equipamento público de nenhum dos três poderes, apesar da rua Oscar Freire ficar próxima a alguns dos maiores hospitais da região.
Após 35 minutos de agonia, chegou finalmente um carro da Polícia Militar, que nada podia fazer. No estado em que se encontrava, segundo os médicos, seu Inácio só poderia ser transportado numa ambulância. A primeira, do Samu, chegaria quarenta minutos depois de chamada, mas veio sem a equipe completa.
Os dois médicos voluntários que foram acudi-lo na calçada subiram então na ambulância e seguiram junto com seu Inácio para o Hospital das Clínicas. Cinco minutos depois que eles saíram, chegou o carro do Resgate, tarde demais.
Jogado numa maca no corredor do pronto socorro do Hospital das Clínicas, como dezenas de outros cidadãos necessitados de atendimento de emergência, seu Inácio morreu duas horas depois. A agonia da família, porém, estava apenas começando.
***
Os documentos de seu Inácio tinham ficado na guarita, mas um colega já os havia levado ao hospital quando seu caso foi encaminhado para o Serviço de Verificação de Óbitos do HC. Mesmo assim, ele seria enterrado como indigente porque estava sem documentos ao ser internado, se a síndica do prédio, uma senhora polonesa determinada e conhecedora dos direitos da cidadania, não tivesse entrado no circuito.
O único funcionário de plantão atrás do guichê da repartição - ¿um moquifo mal cuidado e sujo¿, na descrição da síndica - informou à viúva Lígia que para seu marido não ser enterrado como indigente teria que ir a uma delegacia de polícia para registrar boletim de ocorrência.
No mesmo momento, aproximou-se um sujeito com o crachá virado ao contrário, sem se identificar, para saber o que estava acontecendo.
- Posso ajudar em alguma coisa? - ofereceu-se muito solícito o dito cujo, que só mais tarde a síndica descobriria tratar-se um dos papa-defuntos que fazem negócios no local.
A esta altura ele já tinha todas as informações sobre o morto e sem ninguém lhe pedir foi logo dando o preço dos seus préstimos:
- Transporte para o Embu é difícil, mas por R$ 800 eu consigo para vocês. O resto a gente acerta depois.
Inconformada com a sem-cerimônia do papa-defunto, como são conhecidos os agentes de funerárias particulares que disputam os mortos encaminhados para o Serviço de Verificação de Óbitos, a síndica dirigiu-se a um posto da polícia, que fica junto ao pronto-socorro, no extremo oposto do imenso complexo hospitalar das Clínicas.
Um investigador lhe informou que para liberar o corpo sem ir à delegacia ela precisaria de um laudo médico com a causa-mortis. E lá se foi a síndica pronto-socorro adentro atrás de um certo dr. Luiz - ¿um médico baixinho¿, foi a única indicação -, que poderia lhe providenciar o laudo.
***
¿O que eu vi foi um corredor de horrores, repleto de macas com pessoas berrando, fazendo necessidades ao lado de outras que tomavam soro, médicos muito jovens e estressados, correndo de um lado para outro, eu não consegui mais ir em frente. Eram cenas de degradação humana, parecia o inferno de Dante¿, conta a síndica dias depois ainda revoltada com o que viu.
Ao perceber a aflição daquela senhora bem vestida que não conseguiu encontrar o tal médico, o investigador resolveu ajudá-la. Também ele nada conseguiu como explicou depois de encontrar o dr. Luiz. ¿O médico me disse que pelas leis vigentes no país ele não pode fornecer o laudo porque o paciente só ficou duas horas dentro do recinto do hospital. O período mínimo necessário para o fornecimento do laudo é de 48 horas¿.
Sem ter como contra-argumentar em se tratando de leis vigentes no país, toca a nossa síndica a voltar de mãos abanando para o Serviço de Verificação de Óbitos. Lá já não encontrou um só, mas vários papa-defuntos, todos de celular na mão, dando ordens como se fossem funcionários, certamente atraídos pelo movimento que aumentou no final da tarde de domingo. Cada vez que ela voltava à repartição, era obrigada a entrar no final da fila, que não parava de crescer diante do único funcionário do guichê.
***
Oito da noite, e o impasse prosseguia. A síndica achou melhor levar a viúva e os outros parentes de Inácio para o seu apartamento, e providenciar um lanche, enquanto o subsíndico, um homem de boas relações nas esferas governamentais, ficaria cuidando da liberação do corpo.
Ao sair do hospital, ela voltou a pedir a ajuda do investigador de polícia, que a encaminhou a duas funcionárias do serviço social do HC, as únicas pessoas não estressadas naquele ambiente de esperanças terminais. Tão tranqüilas estavam que ignoraram a presença da síndica.
- Mas outra vez? Já demos todas as informações para os parentes deste senhor. Será que vou ter que repetir tudo de novo?
- Vai, sim! Porque sou eu que pago o teu salário com os meus impostos! Agora você vai me dizer como faço para enterrar o meu funcionário sem ter que pagar estes papa-defuntos que tem aí.
Só então ela ficou sabendo que a apenas três quadras de onde estava funciona um posto do Serviço Funerário Municipal, junto ao cemitério do Araçá - informação básica que estranhamente não está indicada em nenhum lugar do HC onde morre muita gente todo dia. Pela última vez, já às nove da noite, agora acompanhada do investigador, a síndica voltou ao guichê do Serviço de Verificação de Óbitos. Ao ver o policial, os papa-defuntos sumiram.
***
Nossa síndica resolveu ir até o fim da história e pediu para outra pessoa levar os parentes de Inácio até o seu apartamento. No Araçá, levou outro susto, mas desta vez por razões opostas. Encontrou, segundo ela, um serviço de primeiro mundo, com atendentes educados e solícitos, que lhe deram todas as informações e resolveram rapidamente pelo computador todos os entraves da burocracia.
Com transporte, caixão, velório velas e até flores, ficou tudo por R$ 443 (apenas para lembrar, o papa-defunto pediu R$ 800 só para levar o corpo até o Embu). Além de mal atendidos, os parentes dos brasileiros, em sua grande maioria pessoas humildes, que morrem no HC ainda por cima são roubados.
Inconformada com os contrastes que encontrou nas duas repartições públicas, a síndica resolveu fazer uma última, singela pergunta à funcionária do Serviço Funerário Municipal:
- Posso saber por que vocês não mantêm um posto dentro do Hospital das Clínicas?
- Porque nos expulsaram de lá.
Estava tudo explicado. Os papa-defuntos privados tinham limpado a área e eliminado a concorrência, quer dizer, o serviço público. Onze horas da noite, com tudo resolvido, a senhora polonesa que veio para o Brasil em 1968, o inesquecível ano do AI-5 que jogou o país nas profundezas da ditadura, ficou com uma outra pergunta na cabeça.
- Por que o brasileiro trata tão mal seus irmãos mais pobres?
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